Bio Saneamento:
Saneamento ambiental na comunidade Sertão do Carangola: reflexo de uma nova
visão das relações sociedade/natureza
Introdução
A partir da segunda
metade do século XX, com os constantes desastres ambientais ocorridos ao redor
do mundo, tornou-se de suma importância situar a humanidade diante da natureza
e de seus processos, levando-nos a rever os hábitos de consumo e as formas de
produção material, presentes na forma capitalista de produção, a qual afeta
diretamente o meio ambiente, causando muitas vezes danos irreversíveis ou de
difícil recuperação.
Até o século XIX, a
compreensão das relações entre a sociedade e a natureza vinculadas ao processo
de produção capitalista desenvolveu-se com base na concepção de uma natureza
objeto dominada pelo homem, tida como fonte infindável de recursos para um
intenso processo de industrialização.
Porém, nas décadas de
60 e 70 percebeu-se que os recursos naturais são finitos e que os impactos
negativos provocados pela exploração contínua e intensa das riquezas da Terra,
nos leva cada vez mais à um desenvolvimento econômico insustentável.
Assim, como reflexo
do surgimento da consciência ambiental, podemos observar no fim dos anos 60 o
nascimento de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que atualmente estão
espalhadas pela maioria dos países, possuindo como objetivo principal
pressionar os Estados e a iniciativa privada a fim de que se promova um
desenvolvimento sustentável baseado na preservação ambiental.
Neste contexto,
podemos destacar o papel do Instituto Ambiental - OIA, que é uma entidade sem
fins lucrativos, com sede em Petrópolis, RJ, criado em 1993 com o objetivo de
desenvolver no Brasil técnicas alternativas e biológicas de tratamento de
esgotos residenciais com reciclagem de nutrientes de biomassa e produção de
biogás através de biossistemas, evitando-se assim as grandes redes de esgoto e
permitindo o reuso tanto da água ( a qual nos dias atuais constitui-se em um
bem natural cada vez mais escasso), quanto do biossólido para a produção sustentada
de alimentos e recuperação de solos degradados.
O presente trabalho
irá destacar a implantação pelo OIA em parceria com o Seop- Serviço de Educação
e Organização Popular e
com a Associação de Moradores local, do primeiro biossistema completo na comunidade
Sertão do Carangola, localizada em Petrópolis, RJ.
Antes porém, é de
fundamental importância que façamos uma breve investigação da visão dialética
marxista, na medida em que o conceito marxiano de natureza, o qual valoriza o
papel das relações econômicas, possibilita uma compreensão da problemática
ambiental contemporânea e de suas consequências, embora os interesses e as
relações de poder analisadas por Marx tenham se modificado na fase atual do
capitalismo, fato que não diminuiu sua enorme influência teórica e prática em
todo o mundo.
Dialética da Relação Sociedade/Natureza: Produção de Valor e Articulação do
Espaço.
Na abordagem marxista
as relações entre sociedade e natureza são baseadas nas formas como determinada
sociedade se organiza para o acesso e uso dos recursos naturais.
Nesta relação o homem
atua sobre a natureza com o objetivo de se apropriar de suas matérias para a
satisfação de suas necessidades orgânicas, e no que ele a transforma,
transforma também sua própria natureza, caracterizando assim uma relação
dialética.
Nesta concepção o
conceito de trabalho é fundamental, pois seu processo é , antes de tudo, uma
transação entre o homem e a natureza, em que o primeiro enfrenta a natureza,
ele próprio como uma força natural, através de suas características peculiares,
que o distingue do animal em seu esforço inconsciente de sobrevivência.
Dessa forma, o
conceito marxista de intercâmbio orgânico introduz uma nova concepção de
relação do homem com a natureza, na qual a natureza se humaniza e o homem se
naturaliza, estando a forma historicamente determinada em cada situação.
A natureza trabalhada
transforma-se em categoria social a medida que incorpora valores de uso, e a
sociedade em categoria natural.Com a produção de um excedente torna-se possível
a troca regular de valores de uso, na qual o trabalho tomado por si mesmo não
apresenta qualquer relação capaz de iniciar uma dialética social, cabendo esse
papel à mercadoria que é em si mesma, simultaneamente, valor de troca e valor
de uso.
Com a produção para
troca, a produção da natureza passa a ocorrer em grande escala, na qual os
objetos produzidos só se tornam valores em sua relação social.Para a
sobrevivência e expansão contínua do modo de produção capitalista torna-se
necessária a apropriação e transformação da natureza enquanto meios de produção
em escala mundial, no qual um determinado espaço será dinamicamente apropriado
e modelado conforme os interesses do capital.
Dessa maneira, o
espaço reflete os resultados dos processos naturais e sociais que coexistiram
até o presente momento, sendo seu valor estabelecido pela quantidade, qualidade
e variedade dos recursos naturais disponíveis, assim como dos recursos
construídos por meio do trabalho, que é potencializado pela técnica, sem a qual
não haveria produção do espaço.
Podemos assim
concluir que o desenvolvimento desigual no tempo e a ocupação distinta de um
espaço fragmentado, homogeneizado e hierarquicamente estruturado constituem
características marcantes da dinâmica do desenvolvimento capitalista.
Técnica e Produção do Espaço
Desde o século XVI a
ciência e a técnica constituem elementos fundamentais na consagração da
capacidade do homem de dominar a natureza, tendo em vista objetivos práticos e
econômicos.
No processo de
desenvolvimento capitalista, a conquista e integração do espaço tornou-se uma
preocupação cada vez maior com relação à sua sobrevivência.
Até o final do século
XIX, o capitalismo procurou universalizar o modo de produção, porém a partir do
século XX, a produção do espaço passa a ocorrer mais pela diferenciação interna
do espaço global.
Com o surgimento da
forma de produzir fordista e a intensificação da atividade industrial, as
técnicas se tornaram cada vez mais evoluídas e foram multiplicadas em massa,
ocupando o território.
Na sociedade
capitalista moderna a adequação do meio ambiente às necessidades sociais se dá
no contexto dos interesses dos grupos sociais que dirigem uma forma de produção
fundamentada no progresso técnico e avanço tecnológico, que são orientados para
atender aos fins da acumulação. Dessa forma, o avanço da técnica vem
intensificando o domínio sobre a natureza, levando ao surgimento de restrições
impostas pelo espaço modificado em substituição às restrições naturais.Até a
metade do século XX, o complexo econômico-científico se limitou a consumir a
matéria existente na natureza, porém após a Segunda Guerra Mundial com o grande
avanço técnico e científico, o complexo não se limitou simplesmente a intervir
na natureza, mas passou a produzir uma outra natureza, para que dela pudesse se
emancipar plenamente. Como exemplo temos o desenvolvimento de tecnologia
atômica frente às possibilidades de escassez de energia fóssil.
Dentro deste
contexto, torna-se claro que atualmente quando as possibilidades técnicas se
concretizam, nos parece mais provável que, quando realizadas de forma negativa
, venham a se transformar em forças destrutivas. Tal fato levou ao surgimento
da chamada "revolução ambiental", promovendo grandes mudanças no
comportamento da sociedade e em sua organização política e econômica,
levando-nos a questionar pela primeira vez a ciência e a tecnologia.
Os Movimentos Ambientais
Na Geografia
Clássica, o ambiente natural é colocado como condição ou obstáculo para o
desenvolvimento de determinada sociedade. Porém, a partir dos anos 60, com a
Geografia Crítica, passou-se a enfatizar o papel do capitalismo tecnológico e
seu caráter predatório com relação aos recursos naturais. A natureza passou a
sofrer um processo de "desnaturalização", no qual o risco maior é a
própria capacidade do espaço físico de suportar tantos objetos industriais.
Hoje, os constantes desastres ambientais têm levado à uma maior
conscientização, provocando o surgimento de movimentos de resistência, havendo
a mobilização de comunidades em defesa de seu espaço geográfico e contrárias à
devastação do meio natural em nível local.
Neste contexto, as
ONGs assumem grande importância, pois alteram comportamentos e visões de mundo,
colaborando para uma nova concepção das relações sociedade/natureza.
O
surgimento de novos valores reflete-se na existência de diversas concepções
ambientalistas. Dentre estas podemos citar as principais correntes ecológicas.
São elas:
- Neomalthusiana: de
caráter extremamente conservador defende o ponto de vista de que a
sobrevivência do planeta só será possível com a elaboração de planos
internacionais para frear o crescimento demográfico, sendo a multiplicação dos
pobres o principal problema da sociedade;
- Anarquista: os
ecoanarquistas defendem a construção de "comunidades orgânicas", nas
quais o homem pode viver em harmonia com a natureza, na medida em que cultive a
cooperação e não a competição, nem a hierarquia ou o poder de Estado,
criticando assim a estrutura do capitalismo;
- Ecologia Profunda:
questiona o excesso de consumo dos recursos naturais por parte da sociedade.
Defende a mudança de atitudes, valores e estilos de vida por parte de cada
indivíduo. Vê a Terra com um único organismo vivo, onde os seres humanos estão
interconectados com o universo;
- Ecossocialista:
defende a queda definitiva do capitalismo e a eliminação de todas as formas de
injustiça social apontando assim para o fim da propriedade privada e a
aproximação com a natureza.
Apesar da grande
diversidade do discurso ecológico há um consenso de que o assunto é de extrema
relevância em relação à questão da sobrevivência humana, tendo a expressão
desenvolvimento sustentável adquirido grande força nos discursos políticos do
mundo atual. É importante ressaltar que o movimento ecológico tem provocado
algumas mudanças de atitude, como, por exemplo, a implantação de reservas
naturais e o crescimento de agências governamentais relacionadas à questão
ambiental e aumento de leis ambientais.
No Brasil, o
acelerado crescimento econômico dos últimos 40 anos provocou uma crise
ambiental, levando ao surgimento de movimentos ecológicos no país,
destacando-se a atuação das ONGs (especialmente na Amazônia, que constitui-se
em área de interesse internacional devido à sua ampla biodiversidade).
Entretanto, a elite brasileira, em geral, tem rejeitado o discurso ecológico, o
que se reflete num padrão de acumulação e comportamento que provoca grandes
impactos negativos sobre o meio ambiente.
Biossistema Integrado na comunidade Sertão do Carangola, em Petrópolis, RJ
O processo de
industrialização consome e contamina um grande volume de água, a qual através
de grandes redes de esgoto, é despejada nos rios sem apresentar nenhum tipo de
tratamento, colaborando assim para a intensificação da degradação ambiental. A
fim de reverter este quadro O Instituto Ambiental - OIA desenvolve projetos de
saneamento ambiental que envolvem o tratamento biológico de dejeto humano com
reciclagem de nutrientes e produção de biogás.
Esta ONG, com sede em
Petrópolis, RJ, foi criada em 1993 com o objetivo de desenvolver no Brasil
técnicas alternativas e biológicas de tratamento de esgotos, visando a
preservação do meio ambiente.
Inicialmente as
técnicas foram repassadas por cientistas alemães da organização Hamburger
Umweltinstitut - HUI, a qual implementou em 1991 uma estação básica em Silva
Jardim, RJ, que a partir de 1993 passou a ser gerida pelo OIA.
Em 1994 novos
projetos foram replicados, dando-se destaque à implementação do primeiro
biossistema completo em Petropólis, RJ, na comunidade Sertão do Carangola, em
parceria com o SEOP - Serviço de Educação e Organização Popular e com a
Associação de Moradores local. Assim, em 5 mil m2, na comunidade Sertão do
Carangola - para onde 3 mil desalojados se mudaram em 1982, 1986 e 1988, devido
as enchentes ocorridas em Petrópolis - o tratamento local do esgoto através de
biossistemas transforma água insalubre em água a nível de balneabilidade com a
produção de adubo orgânico para a hoirta-pomar. O biossistema integrado
significa uma mudança no conceito de modelo produtivo, pois deixa-se de lado o
modelo linear, no qual os resíduos são considerados inúteis, e parte-se para um
sistema integrado e renovável onde tudo tem utilização e pode ser aproveitado.
O
funcionamento do biossistema se dá por meio das seguintes etapas:
• Os dejetos são canalizados para o biodigestor
(implementado pelos chineses), no qual por meio destes se produz o biogás
utilizado para cozinhar.
• Em seguida, o efluente do biodigestor segue
para tanques de sedimentação/ oxidação por algas verdes
(as quais servem de
alimentos para os patos).
• Por gravidade, a água passa por lâminas sutis
e cai no tanque de peixes (Tilápia vermelha e preta), que se alimentam de algas
e micro-organismos, produzindo novos nutrientes. A minialzina aí instalada
permite uma maior oxidação para os peixes.
• A água segue para os tanques com macrófitas
(plantas aquáticas), que reciclam os nutrientes. As macrófitas são utilizadas
para fertilização do solo e alimentação das aves, sendo que o excedente vai
para a composteira junto com os restos de colheita e biossólido para ser usado
na época de maior necessidade para o plantio.
Este sistema pode ser
replicado e mantido por pessoas da própria comunidade, o que gera novos postos
de trabalho e renda.
Na estação piloto do
Sertão do Carangola, o SEOP fornece uma ajuda de custo para os nove
adolescentes que cuidam da horta, os quais devem estar freqüentando a escola.
As verduras e legumes
produzidos são vendidos em feiras próximas, contribuindo para o aumento da
renda mensal das famílias destes adolescentes.
Uma vez por mês estes
jovens pescam no tanque de peixes, os quais segundo análises de diferentes
laboratórios são aptos para consumo.
O biogás produzido é
utilizado para cozinhar, sendo canalizado para o Centro Educacional Infantil
Casa da Paz , o qual atende
por volta de 50 crianças em idade de 2 a 5 anos.
A princípio houve certa
resistência por parte da comunidade à implantação do biossistema, em
conseqüência do mau cheiro e da proliferação de mosquitos. Porém, com o
aprimoramento das técnicas tais problemas foram solucionados, utilizando-se,
por exemplo, a criação de patos, que comem as larvas dos mosquitos.
Conclusão
Por meio dos
constantes desastres ambientais relacionados ao modo de produção capitalista,
percebe- se claramente uma forte contradição entre seus princípios básicos de
funcionamento e a busca de um maior equilíbrio ambiental.
Neste contexto, o
desenvolvimento de projetos que buscam uma maior conscientização ecológica
através da utilização racional dos recursos naturais é de suma importância para
a construção de uma nova concepção das relações sociedade/natureza, a qual
rompe com a dicotomia entre o homem e o meio natural.
A implementação de
uma estação de tratamento biológico de esgotos na comunidade Sertão do
Carangola, em Petrópolis, RJ, é um exemplo claro das mudanças ocorridas ao
nível do surgimento de novos valores e visões de mundo, os quais se baseiam na
preservação da natureza por meio de um desenvolvimento econômico sustentável.
Referências
Bibliográficas: BERNARDES, Júlia Adão e FERREIRA, Francisco Pontes de Miranda
(2003): Sociedade e Natureza. In: CUNHA, S. B. da e GUERRA, A. J. T. (org.): A
Questão Ambiental: Diferentes Abordagens. Editora Bertrand Brasil, Rio de
Janeiro. DUARTE, Rodrigo A. de Paiva (1986): Marx e a Natureza em O Capital.
Edições Loyola, São Paulo.
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